O objetivo deste texto não é fazer qualquer juízo de valor em relação a quem divulga casos clínicos e imagens de “antes e depois”, mas sim fazer reflexões sobre as implicações do uso da imagem dos pacientes, as legislações às quais cirurgiões-dentistas estarão expostos ao fazê-lo, e os cuidados para evitar processos judiciais.
O que mudou com a resolução CFO 196/2019?
A resolução CFO 196 de 29 de Janeiro de 2019(1) autoriza a divulgação de Selfies de cirurgiões-dentistas e de imagens de “antes e depois” (tratadas semanticamente na resolução como “diagnóstico e resultado final de tratamentos odontológicos”), antes consideradas infração ética segundo o art. 44 do Código de Ética Odontológica. O paciente deve autorizar a divulgação das imagens por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O texto ainda salienta que continua proibida a divulgação do transcurso de procedimentos fora de publicações científicas e de imagens que permitam identificar tecidos biológicos, equipamentos e instrumentais.
Muitos profissionais comemoram a resolução, vista como uma modernização da legislação, entretanto ela gerou muita controvérsia. Advogados, profissionais da Odontologia Legal e algumas entidades apontaram pontos conflitantes e não esclarecidos da resolução, como por exemplo:
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O CFO fornecerá um modelo de TCLE para autorização de uso de imagem?
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Quais os limites para os materiais biológicos, equipamentos e instrumentais citados na resolução? O equipo não poderia aparecer na imagem?
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Qual a definição do ‘antes’, ou do momento diagnóstico? Pode parecer simples, mas por exemplo, no caso de uma cirurgia de reconstrução de alguma estrutura da face seria ética a postagem do “antes”?
Controvérsias a parte, a resolução está em plena vigência, e ao menos na esfera ética, o CFO garante que o dentista está coberto, ainda que a resolução entre em conflito com o próprio código de ética e à Lei 5082/66, que regulamenta o exercício da odontologia no Brasil. Há muita discussão sobre a validade jurídica desta alteração, por conta da forma com que foi implementada e da hierarquia entre as leis. Para os que quiserem se aprofundar, deixarei uma lista com textos e artigos para leitura no final do texto, pois aqui focarei mais em reflexões práticas.
O ponto principal que deve ser compreendido, é que Cirurgiões-dentistas não estão subordinados apenas ao código de ética odontológica, e uma resolução do CFO não tem poder para alterar leis de outras esferas, como o código do consumidor ou o código civil, por exemplo. Desta forma, a “modernização” do código de ética pode gerar insegurança jurídica aos profissionais.
Então, o que NÃO mudou com a resolução 196/2019?
Como já mencionado, a permissão do CFO via resolução deixa o profissional coberto na área ética, desde que sua publicidade não fira outros artigos do CEO e resoluções afins, mas observem o que dizem estes artigos da Lei 8078/1990, conhecida como o Código de Defesa do Consumidor.
Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
Ou seja, segundo o art. 30 do CDC, a publicidade que um clínico fez sobre um clareamento dentário, por exemplo, passará a integrar o contrato celebrado pelo paciente que realizar este serviço com este profissional, isto inclui as imagens de “Antes e Depois” contidas na publicidade. Afinal, as expectativas criadas pelo paciente sobre o resultado final de um tratamento, especialmente um estético, serão fruto desta publicidade, e se estas expectativas não forem atingidas o paciente poderá acionar judicialmente o cirurgião-dentista por falha na prestação de serviços.
“Mas minha publicidade era regular!”
“Não houve falha, o procedimento foi bem-sucedido!”
Um resultado aquém do esperado de um tratamento, o insucesso, ou até uma falha técnica do profissional não configuram por si só falha ética, ou motivo pra demanda judicial. Quando um paciente processa um cirurgião-dentista, isto é resultado final da deterioração da relação entre os dois, e pode ocorrer mesmo após um tratamento tecnicamente correto.
Esta relação é construída desde o primeiro contato do paciente com o cirurgião-dentista, que muitas vezes ocorre por meio da publicidade. Um paciente que é esclarecido pelo profissional, é informado sobre os detalhes do tratamento, incluindo possíveis riscos e intercorrências (e a conduta a ser tomada caso elas ocorram), entenderá a atividade do dentista como um meio para se alcançar o melhor resultado possível. Por outro lado, um paciente angariado por uma publicidade agressiva ou apelativa, e mal informado sobre os detalhes do procedimento, poderá exigir um resultado objetivo específico.
Considerando que ambos os pacientes processem o profissional (o do primeiro caso tem uma chance muito menor de fazê-lo!), a conduta do profissional antes, durante e depois do tratamento pode ter mais impacto na sentença do que o resultado do tratamento em si, e a publicidade tem um papel central nisto. Neste ponto, a anuência do conselho de classe a este tipo de publicidade não importa na esfera cível, e o juiz pode decidir em desfavor do profissional caso interprete, entre outros fatores, que sua publicidade foi enganosa ou que tenha induzido o paciente ao erro.
Além do paciente que será alvo daquela publicidade, o paciente cujo caso clínico foi fotografado e divulgado também deve ser motivo de atenção. Ainda que haja o consentimento por escrito, o paciente pode sentir que houve dano a si caso ele possa ser identificado nas imagens, se estas forem utilizadas por terceiros ou até viralizarem como memes, para citar algumas situações.
Orientações para a prática:
Cuidado com o “postar por postar”.
Considere todas as suas postagens em perfis profissionais como peças publicitárias (em última instância elas são!). Como tal, elas devem conter todas as informações exigidas pelo CEO e pelo CDC, caso seja a exposição de um caso clínico, o paciente fotografado também deve dar seu consentimento por escrito. Manter sua publicidade em conformidade com a legislação fica praticamente impossível quando os casos são postados a esmo pelo profissional em suas redes. Portanto, planeje suas publicações e escolha com calma quais casos clínicos publicar.
Não divulgue o “durante”.
Não é raro ver nas redes sociais fotos ou até filmagens do transoperatório de cirurgias da boca e da face, com imagens que chegam a ser fortes para o observador; ou imagens do transcurso de trabalhos restauradores, com exposição dos preparos dentais para restaurações indiretas. Se o “antes e depois” é polêmico, não há dúvidas sobre o “durante”: É infração ética segundo a própria resolução 196/19.
Art. 3º. Fica expressamente proibida a divulgação de vídeos e/ou imagens com conteúdo relativo ao transcurso e/ou à realização dos procedimentos, exceto em publicações científicas
Além das questões éticas envolvidas em expor um paciente (geralmente sem seu consentimento) durante um procedimento operatório, tais divulgações não trazem benefício nenhum para o profissional que as divulga. Seus seguidores não têm conhecimento técnico para interpretar os procedimentos mostrados, e é mais provável que as imagens o desestimulem a procurar um dentista do que o contrário. Se o objetivo for compartilhar o caso com outros profissionais, o ambiente correto é um congresso ou uma publicação estruturada.
Tenha sua documentação elaborada por um profissional.
O termo de consentimento livre e esclarecido é a melhor forma de documentar a informação prestada a um paciente antes de um procedimento, e é a forma solicitada pelo CFO para autorização de uso de imagem para divulgação de casos clínicos. Este documento não pode ser substituído por um contrato, uma nota fiscal ou uma assinatura no prontuário. Ele deve ser específico, e conter todas as informações que possam impactar no consentimento do paciente para execução do procedimento ou uso da imagem em linguagem acessível. Procure um profissional da Odontologia Legal para elaborar esta documentação para sua clínica.
Considere contratar um seguro de responsabilidade civil
Ainda que você siga todos os critérios éticos e técnicos na sua prática profissional, não há como garantir que você não será processado eventualmente, e algumas especialidades estão mais propensas a isto do que outras. Um artigo publicado na Revista Brasileira de Odontologia Legal (2) analisou sentenças de processos de responsabilidade civil no estado de São Paulo publicadas no ano de 2019. As especialidades mais processadas da amostra foram a implantodontia, a prótese e a ortodontia. Dependendo do fluxo de pacientes da sua clínica, da abrangência da sua publicidade e das especialidades com que trabalha, você pode considerar contratar um seguro de responsabilidade civil, que cobrirá eventuais indenizações cobradas na justiça, isto gera mais segurança e tranquilidade no logo prazo, pois um processo judicial é desgastante para o profissional, independente da sentença.
Considerações finais.
Concluindo, a ideia não é que tenham medo de divulgar seu trabalho, mas que entendam que a publicidade na área da saúde é mais complexa do que o tom da resolução faz parecer, e a adição do uso de imagens de pacientes adiciona mais uma camada a isto. Compreender o contexto legal que nos cerca como profissionais e os riscos de determinadas estratégias, como o antes e depois, é essencial para um bom planejamento das ações publicitárias.
Fiquem à vontade para postar dúvidas, sugestões, críticas ou adicionar algo ao assunto nos comentários, e sigam minhas redes profissionais para mais conteúdo sobre o tema. Se preferir, entre em contato diretamente.
Muito Obrigado pela atenção até aqui!
Lista de Leitura
Resposta do CFO a alguns questionamentos relacionados à resolução 196/19
Nota técnica 01/2020 da Associação Brasileira de Odontologia Legal sobre a resolução
Artigo de Opinião – Paradoxos da Resolução 196/2019: “Eu tô te explicando para te confundir”
https://portalabol.com.br/rbol/index.php/RBOL/article/view/252
Referências Bibliográficas
1. Resolução CFO 196 de 29 de Janeiro de 2019 [Internet]. 198/2019. Disponível em: https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%C3%87%C3%83O/SEC/2019/196
2. Bento MIC, Rosa GCD, Maciel DR, Biazevic MGH, Santiago BM, Michel-Crosato E. ANÁLISE DAS SENTENÇAS DE PROCESSOS JUDICIAIS ENVOLVENDO A ODONTOLOGIA JULGADOS EM PRIMEIRA INSTÂNCIA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO NO ANO DE 2019. Rev Bras Odontol Leg [Internet]. 27 de abril de 2021 [citado 24 de fevereiro de 2022];8(1). Disponível em: https://portalabol.com.br/rbol/index.php/RBOL/article/view/349
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